segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O surf e a Deus me Livre



Visual do Cepilho em 1975: paraíso quase intocado na época. Foto: Bruno Alves.
  
Todo esporte, atividade, ou tudo que se faz na vida, tem seu Everest a ser conquistado, mais cedo ou mais tarde. Mas toda montanha carrega seus mistérios, perigos e agrouros também.

A ladeira Deus me Livre (trecho da estrada que dá acesso a Trindade) era assim há algum tempo.

Algo quase intransponível, ameaçador e traiçoeiro. Porém, ela levava direto ao paraíso intocável de Trindade, no extremo Sul do litoral fluminense.

Envolta neste misterioso clima, era a porta de acesso para a glória de desfrutar um local praticamente isolado da civilização.

Histórias de ondas enormes, pesadas e perfeitas debruçavam-se sob a encosta selvagem da Mata Atlântica, ou o calabouço da perda de um carro, ou quem sabe até a vida nos perigosos abismos em forma de lama que a circundavam.

A primeira vez que ouvi falar da Deus me Livre foi com meus surf brothers Bruno e Alberto Alves, verdadeiros Indiana Jones do surf brasileiro nos anos 70.

Histórias contadas no intervalo das aulas, no colégio Santo Américo, ou nos bastidores do edifício Bela Vista, no Guarujá (SP), alimentavam minha recém-formada alma de surfista. O medo e o temor impregnavam a aura das narrativas, aguçando minha curiosidade, mas impondo também um respeito proporcional.

Os dias se passaram. Já não me lembro ao certo quantos, mas chegara a hora de conquistar ou ver de perto meu então Everest, a Deus me Livre!

Em um feriado de Páscoa decidi ir até lá. Na época não tinha carro, nem previsões de clima e ondas na internet, apenas muita vontade e disposição de entrar no desconhecido, testar meus limites, enfrentar meus medos.

Assim fui com alguns amigos até a rodoviária partindo para Ubatuba e então outro busão até o trevo de Patrimônio. Ali era nosso acampamento base. Mas um de meus medos acabara de se materializar, uma chuva fina e constante escorria pelo calçamento. Iniciamos nossa caminhada por alguns íngremes e penosos quilômetros até o bifurcamento entre Trindade e Laranjeiras.

Iniciava-se minha jornada. Conforme íamos nos aproximando da descida, meu coração batia mais forte e a terra molhada fazia nossos pés deslizarem como skis na neve.

Incrível como na vida existem os ritos de passagem e seus misteriosos passos. Lembro-me tão nitidamente de um filme que assistia nas matinês no único cinema no centrinho do Guarujá: Horizonte Perdido! Cara, que impressionante a cena das pessoas sendo "congeladas" no tempo naquelas montanhas perdidas.

Ali, logo depois da Deus me Livre, nos aguardava um mundo cheio de surpresas e delícias, parado no tempo e espaço. Mas antes precisávamos cruzá-la, a linha real que adentrava no imaginário, materializando nossos sonhos da onda perfeita, virgem, intocável.

Quando me dei conta, estava defronte ao meu pequeno-grande Everest! Paramos para observar a ladeira sem fim, mais íngreme de tudo o que imaginava, intimidadora pelo próprio nome.

Quem eventualmente descia, sabia que teria a volta pela frente! Não acreditei quando vi um Volkswagen metros abaixo, engolido pela besta fera! Mas, aos poucos, passo a passo, fomos descendo por entre a névoa que se descortinava em um mar cinza e revolto, com sei lá quantos decibéis de estrondos.

A ponta do Cepilho era a mais pura e bruta energia tal qual tudo que nos rodeava. Ficamos ali, parados, olhando uns para os outros, mudos, perplexos diante de tão grande força. Podíamos sentir Deus na sua mais intensa expressão, tal qual um escalador deve senti-lo em seu cume.

Tivemos apenas o tempo de nos acomodarmos nos ranchos de pescadores à beira-mar e sem luz elétrica. A noite chegou como uma densa e abrupta escuridão.

Assim passamos nossa Páscoa em Trindade, conhecendo mais sobre seus moradores, suas histórias, suas poderosas ondas, sobre nossos medos, conquistas e sentimentos tão profundos, ou melhor, tão altos como os reais Everest que ao certo encontramos em nossa jornada pela vida.

Depois desta data aprendi algo que até hoje tem me ajudado e muito. Que, contrário ao nome da ladeira Deus me Livre, na vida é a permissão do próprio Deus em passar por estes aparentes obstáculos que me levaram para mais perto de mim mesmo e para mais perto Dele.

“Deus não me Livre”. Assim poderei ir mais longe, mais profundo, saindo da superficialidade da vida, crescendo e amadurecendo.



Por Motaury Porto em 15/02/11 01:25 GMT-03:00

Retirado de http://waves.terra.com.br/surf/noticia/o-surf-e-a-deus-me-livre/45464



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